Muito do que eu fazia ainda faço quarentenada. Como boa privilegiada, perdi pouco. Meu trabalho chega, a aula de ioga chega, o ensinamento chega, chegam mais aulas novas, meus amigos chegam pelo celular. Mas eu não tenho ido. Me peguei pensando em ir.

Não faz falta o trânsito, o atraso, o estacionamento, o carro. Mas me faz falta o caminho – me faz falta ir.

Hoje, domingo, normalmente eu pegaria a estrada pra Sobradinho com o sol recém-nascido. Pegaria o eixinho de baixo, pegaria a saída norte. Na descidona pro Colorado olharia a cidade de longe, fingiria que estava pegando a estrada pra viajar. Gostaria do que eu estava ouvindo, abriria o vidro, procuraria o horizonte mais distante possível. Passaria na frente da feira do produtor, pensaria num amor, seguiria reto, pegaria o caminho de Sobradinho dois, conferiria o relógio, veria que estava na hora. Estacionaria, daria bom dia na guarita, sentiria os cheiros do KPG, veria carinhas compenetradas. Oito e meia em ponto começaria o que começou de fato na sala da minha casa, igualzinho – e que bom que teve. A diferença é que eu teria ido. 

Existe esse entre-dois que nem é o lugar de onde se sai nem é o lugar onde se chega. É uma estrada, uma calçada, um território não demarcado, uma terra de ninguém. Onde não se fica, se passa. Um território em movimento, uma terra que dança rápido debaixo dos pés, debaixo das rodas. 

O caminho não é abrigo, não é estável, é só rapidamente reconhecível. Não tenho exatamente uma relação familiar ou íntima com uma pista, uma calçada, uma passagem – não dá tempo. O caminho se move, não fica. 

Ainda assim a frequência faz conter familiaridade – uma sequência de paisagens que se sucederão quase que com certeza, uma sequência de cheiros, de sons, de cores, que são um pouco casa. Com uma vantagem: bem mais que na partida e bastante mais que no destino, há no caminho todo espaço para imprevistos.

Uma obra, um impedimento. Um acidente. Um metrô quebrado, um ramo desativado. Deus me livre um pneu furado. Um transeunte que me chamou a atenção na calçada, um rosto conhecido. Uma mobilização, um evento. O caminho é o território do inesperado.

O caminho frequente, então, celebra o encontro do conhecido com o desconhecido, o que sei com o que não sei, o que é com o que pode quem sabe acontecer. Uma fresta cômoda – é fora, mas existe dentro, é conhecida, familiar, habitual.

Quantas vezes, no caminho pra análise, um evento qualquer no caminho me deu a chave, o declique, o tema pra quebrar o código do que eu vinha tentando entender. Não estava resolvido quando eu saí de casa – se resolveu no caminho. Naquela troca de olhares aleatória. Num evento, num gesto que me remeteu outra coisa.

De novo, que sorte, está tudo bem, estou em casa. Mas, além de gente, me faz falta tudo o que não é estático, tudo o que acontece no entre. Me faz falta ir.

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