todo santo dia, fim de tarde, passa na minha quadra um moço vendendo pamonha. sábado ele se atrasou. de uma das janelas, uma menininha começou a gritar do nada: olha a pamonha, olha a pamonha – na mesma entonação do moço.

saiu um sorriso do fundo do meu peito praquela vozinha fina. procurei a dona dela nas varandas vizinhas, mas não achei. depois ouvi baixinho a voz do pai dela, falando junto com ela: olha a pamonha, olha a pamonha. uma brincadeira dos dois – e minha, e sabe-se lá de quem mais ouvia.

no início da quarentena assisti umas aulas incríveis do binah espaço de arte onde a stella barbieri falava um bocado sobre aproveitar a quarentena como uma oportunidade pra olhar pra dentro de casa. viver com todo o nosso corpo aquilo que está acontecendo, perceber o tempo se estender, o espaço da casa se dilatar, experimentar essa pandemia como o evento extraordinário que ela é. 

pensei muito na ideia de brecha, de entre-dois que é estar dentro, atenta à passagem do tempo e à mudança da vida, e olhar pra fora, espiando a menininha da pamonha, vigiando nossa saudade do mundo, atento ao outro no que for possível. quanto mais dura mais doi ficar nessa brecha, apertando nossos ombros, já sendo impossível voltar e impossível seguir. permanecemos aqui, presos na rachadura do espaço-tempo.

daqui da minha brecha a parte da janela é que me alivia. adivinho a companhia invisível do resto da grande família humana pelo cheiro de bolo, pela música da vizinha no piano, o “olha a pamonha, olha a pamonha” da menina na varanda. pelo olhar do seu severo na portaria, no um terço do rosto dele que ainda consigo ver. temos tido as pessoas pelas partes, e vamos assim firmando contratos novos com esses pedaços de gente.

me deu um trem bom no sábado, quando vi que eu e a menininha pautamos nosso fim de tarde pelo “olha a pamonha, olha a pamonha” do moço na rua. quando ele passa, nós duas sabemos que o dia terminou – eu vou sair do computador, jamais saberei o que ela vai fazer, mas já somos duas humanas fazendo alguma coisa. eu sei que ela existe e está atenta, eu já estou menos sozinha.

voltando de bike da asa sul, outro dia, vi uma família inteira tirando foto nos cipós de uma árvore antiga – e isso também abraçou minha humanidade por dentro. besta como for uma foto pendurado num cipó de árvore antiga, eles tiram, e eu sei que já fiz coisa parecida. besta como for, postamos fotos bobas nas redes sociais – essa janela meio idiota, menos poética do que a da menininha da pamonha mas ainda assim janela.

numa live semana passada a suely rolnik falou do desgaste do pertencimento, essa noção meio narcísica – uma necessidade de reconhecimento, impreenchível como tudo de que trata o ego. em oposição a isso ela falou da beleza da participação – se sentir parte. a foto besta da família, os vizinhos que me triscam os sentidos fazem parte da minha vida, do meu dia, fazem parte de mim. ser parte, mais que pertencer. é o que ando cavucando, aqui sozinha, meio quieta.

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