Guilhotina

Ela vivia enfiada naquele quarto fazendo sei lá o que.

Um quarto encarpetado, úmido e um pouco fedido, que tinha uma estante velha cheia de livro e que dava pra um depósito embaixo da escada com cara de passagem secreta mas que não guardava mistério nenhum além dos nossos cadernos de alfabetização de que ela nunca se desfez. Era insalubre pra uma mulher com asma e não sei se usaria a palavra feliz, mas definitivamente a mamãe gostava dali.

Lá dentro tinha uma guilhotina.

Que eu não podia tocar mas que na mão dela decepava resmas e resmas de panfletos anunciando a revenda de bolsa de couro ou de pijama ou então uma ação da prefeitura da quadra, uma propaganda do brechó ou de qualquer outra coisa que ela tivesse mirabolado naquele mês. 

Lembrei da guilhotina – eu que passo meus dias enfiada no meu quarto, fazendo sei bem o que. Adivinhei que, assim como meus cadernos do pré, ela havia de estar guardada em algum lugar até hoje, e estava, e trouxe a guilhotina pra morar comigo.

Não sem um certo medo de me cortar na melancolia cinza dos projetos caseiros dela sucessivamente interrompidos, e que hoje me parecem perigosos por parte de pai e de mãe, com a sombra da demência caindo sobre a cena dela ocupadinha no quarto mofado, agravada pela sombra da inutilidade na pergunta dele me ameaçando o pescoço a cada feira de impressos de que volto: vendeu quanto?

Mas foi um grande encontro, o dos meus dedos com a guilhotina da minha mãe, refilando zines e um projeto de livro que resolvi refazer do zero, embora adore os desenhos todos. Imprimindo, refilando, assinando e empacotando, convencida de ter uma gráfica em casa só porque tenho uma impressora média e uma guilhotina antiga.

Medo vestido de palavra vira chão firme debaixo do pé, pai. Gente que ama fazer faz só porque ama mesmo. Só porque uma ideia fora da cabeça aumenta o mundo.

Do jeitinho dela, sem muito tempo pra formular assim, mas ela teve sim um quarto (mofado) pra si.