Quem vê um desenho não vê todo o desenho. O resultado no papel é sempre o possível na negociação da ideia com a mão, é onde se pôde chegar – com parte importante do caminho vindo do erro, acidente, acaso. Afastada a frustração pela ideia adulta do que é errar, se aprende a incorporar o inesperado e a amar a forma estranha que resultou sem previsão.

Mas mesmo esse desenho possível não se encerra onde chegou. O bidimensional intrínseco ao suporte papel – essa casa fininha, frágil, maleável – convida a mão a explorar a outra face. O que há no verso? Como o verso incide no desenho?

Esta é a pergunta que dispara o desenho-brinquedo: e se eu dobrar assim? Nasceu daí um desenho que se move, um desenho-brincadeira. A dobra se insinuou no desenho, escondendo um pedaço e revelando o papel-verso, o atrás. 

No princípio era a cobra, a cor, o quadrado, os retângulos. A cabeça da cobra era como a capa de um livro-acordeão – ou seu fim, num loop infinito. A cobra éramos nós, correndo atrás do próprio rabo. 

Mas a dobra fez surgir balões, casas, triângulos, montanhas, mandalas, segredos, losangos, tocas, lugares escuros, páginas, pontas. De repente, choveu na cobra perdida, e ela se escondeu na tenda. Por trás da montanha, ela encontrou seu próprio rabo. O pôr-do-sol misturou o céu azul forte com laranjas e amarelos gritantes. Um balão-de-são-joão-pipa apareceu num céu chuvoso. De repente a chuva virou seta e a cobra virou uma interrogação gigante. Eu vi uma galinha d’angola. Uma casa-chuva com um pilar de cobra e o outro faltando. Fechei então um coração medroso, num céu metade azul, metade chuva e, decidi que por ora, ficou pronto o desenho.

Em diálogo com os neoconcretistas, com a obra colorida e dançante de Hélio Oiticica, com o convite à manipulação e à narrativa aberta do “Livro da Criação” de Lygia Pape, o desenho-brinquedo evoca questões que vêm se desdobrando desde a década de 1960. As camadas e reentrâncias de tecido dos “Parangolés”, as gavetas e dobradiças dos “Bólides”, a subversão narrativa de Pape renascem aqui na brincadeira das dobras. 

No jogo de dobras, o desenho se ressignifica, se amplia, ganha novas formas e novos significados. O papel cresce, ganha dimensões – desachata da mesa e ganha vida na dobra que se impôs. A terceira dimensão surge como surpresa.

Embora seja talvez este o desejo infantil do desenhista, ninguém está preparado para o susto de ver o que se esboçou no papel ganhar vida e virar objeto. Era só traço e, pela dobra, de repente pulou, viveu, existiu no mundo concreto.

Um avião, um túnel, um buraco. Uma esquina com uma porta que nunca se saberá para onde vai. A cobra que ficou mais curta ganhou uma toca pequena – será que ela cabe lá dentro? Um sapinho, um mapa-mundi, um livro. Um foguete, uma faca pregada na parede apontando direto para o seu coração.

Aqui se joga também com a escala. Como se chamaria a microdimensão entre as paredes da dobra dobrada e redobrada? Olhar para dentro da dobra da dobra é um convite ao microscópico. Explorar o micro do micro do micro do desenho – até enxergar átomos e células.

O jogo infinito de dobraduras lembra o que ultrapassa o visível e evidente. Uma pessoa é além dos traços e manchas que a definem: olhos, nariz, cabelos. Há o entre, há o dentro, só acessível-desenhável com a imaginação, lápis, papel e mão. O coração que bate sem pensar, estômago e entranhas digerindo por debaixo da capa de um todo-indivíduo. Há ali sempre uma pele arrepiando, neurônios conversando, secreções e mucosas acontecendo nas dobras enquanto se vive e não se vê.

A dobra coloca em dúvida a percepção do desenho como linha, história e progressão. A ideia ocidental de narrativa como sucessão temporal de eventos, que viciou/restringiu a leitura a algo que se produz da esquerda para a direita e de cima para baixo, é cindida, interrompida pelo tridimensional. Como se lê uma cobra interrompida pelo surgimento de uma casa? Como se lida com uma narrativa fluida e tranquila quando cai uma pedra bem no meio de uma história que até então fazia sentido? 

Ao interromper a linha reta, a dobra também nos faz questionar nossa noção de tempo linear. À leitura da imagem como narrativa de sucessão de eventos, a dobra (ou melhor: as dobras) (ou melhor: a possibilidade da dobra) sugere a possibilidade de histórias paralelas, de tempos paralelos. O formato aberto e bidimensional do papel torna-se assim apenas uma entre infinitas possibilidades num desenho-brinquedo forjado no movimento.

Sua proposição nasce numa mesa coletiva de desenho afirmando desde já sua demanda de toque, de intervenção, de trabalho conjunto. O espectador não deve só assistir: é chamado a intervir, dobrar, complementar a história do desenho propondo ele mesmo suas dobras, fissuras, interrupções. Mesmo as cinco séries que se apresentaram prontas, dobradas, inertes na parede Galeria Espaço Piloto estavam latentes deste movimento, despertando em espectadores que estavam na noite de abertura um comentário que entreouvi com prazer: “dá vontade de mexer”. 

Instigar este desejo evoca o buraco entre querer e poder mexer. A questão de estar livre o suficiente para permitir o movimento: uma proposição grávida de um dos mais importantes achados freudianos, o fort-da, a brincadeira de esconde-esconde. Suportar fazer sumir um objeto para vê-lo aparecer diferente. “Brincar de perder o objeto implica pôr em jogo a si mesmo, destacando-se da imagem e ativando o corpo real”, diz Tânia Rivera[1]. Experiência, portanto, tão rica quanto assustadora.

Tanto assim que quando propus a intervenção direta do espectador, durante a Feira Motim, uma feira de impressos e desenhos, a participação ativa nem sempre se concretizou. As mãos do espectador pareceram tímidas diante do desenho alheio. 

O brincar, essa atividade que Winnicott localiza como “área intermediária de experimentação, constituída pela realidade interior e a vida exterior”[2], contém a substância da ilusão “permitida ao bebê e à criança e que, na vida adulta, é inerente à arte”. A arte seria, assim, uma espécie de espaço do brincar do adulto – ao qual nem sempre conseguimos comparecer.

Diante do desenho-brinquedo, crianças e adultos perguntaram o que era para fazer. Como era para dobrar. Perguntaram pela regra de um jogo que não tem regras.

Resta a esperança de que deixar esta pergunta sem resposta, deixar o papel aberto instigando à manipulação, provoque tomar parte em uma ação pequena, poética e singela – já que, como diz João Guimarães Rosa em Tutaméia, “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”.

O desenho-brinquedo é desenho-dobradura-metáfora que, como a vida, não tem manual de instruções. Aqui não somos origami – não tem passo a passo, não sabemos o que estamos fazendo nem onde vamos chegar. Não somos forma fechada, estática, final. Não somos um desenho de nada nem somos forma abstrata. Somos o que a mão souber fazer desse embaralhamento de dobras e pontas. O que é a vida, senão dobras e pontas?

Um jogo de significados, que a gente mesmo embaralha e desembaralha, arruma e desarruma e sempre ameaça rasgar. O segredo é não parar de se mover e de procurar encontrar novas formas, novas combinações, novos riscos, novos medos – e novos deslumbramentos pela forma difícil, impensável, aberta, incrível.


[1]  RIVERA, Tânia, “Psicanálise antropogáfica (Identidade, gênero, arte)”, Porto Alegre: Artes & Ecos, 2020, p. 108.

[2]  WINNICOTT, David, “O brincar e a realidade”, São Paulo: Ubu Editora, 2019, p. 16.

One Reply to “Desenho-brinquedo

  1. Muito legal a reflexão e a obra.

    Adorei os movimento que aparece, tanto no texto quanto na obra.

    Entre outros, o balanço entre criar e recriar, alinhar e desalinhar, arrumar e desarrumar, acabado e inacabado, adulto e criança, desenho e brinquedo e, claro, autora/obra/público.

    Sensacional.
    Parabéns :))

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