Olhei os outros artistas e nos vi assim: carregando ideias e almas em formato de desenhos e livros, dentro de sacolas, mochilas e malas, para já já estendê-los em mesinhas que seriam como que varandas das nossas cabeças.

Estávamos prestes a estender nossas almas em mesinhas, para que todos os passantes pudessem ver. E neles, ver a gente em transparência, como se fôssemos um desenho de criança, onde dá pra ver o que vai por dentro das coisas todas do mundo.

Desenhar me parece um ato de coragem porque, ao contrário do que acontece quando escrevo, no traço eu não controlo até onde vai minha mão. O desenho todo é um ato falho sendo ato próprio, ali o diabo do inconsciente faz o que bem entende. No desenho não mando eu: a mão que sabe.

Como se não bastasse o susto de estar subordinada à minha mão esquerda, sempre faltou à minha cabeça desenhista a parede da técnica onde me escorar. Sei que ninguém descola poética da técnica: para além do tema, a imagem fala pelo traço, pela escolha do suporte e das ferramentas, das cores e das escalas. Mas os melhores tecnicamente – malandros – conseguem esconder, disfarçar, deixar o eu-do-artista quase que transparente, mimetizado numa geometria ou num realismo perfeito. Não é meu caso. Não tenho técnica nenhuma. De nada. Fugi de toda aula de desenho que eu fiz na vida. O que aparece é o eu mesmo, bruto.

Para piorar, eu sou apenas semi-alfabetizada em imagem. Meu desenho me pare nua no vazio – e, como um bebê que sente falta das paredes do útero, me desestabiliza pensar que alfabetizados visuais leem no meu desenho coisas que nem sei em mim.

Desesperador. E no entanto inevitável e urgente, desde que me entendo por pequena pessoa.

Um dia pensei nessa urgência desenhativa que me dava medo como um jacaré que me devora por dentro. Quando ele está ativo, vem como uma palpitação, não paro sentada, tomada por uma angústia (boa). Estou eu aqui tentando falar do jacaré com palavras, e não adianta: ele não é palavrável. Mas fica com essa imagem: um jacaré te comendo as entranhas. E você gostando disso. E dele.

Depois li num texto que Lacan comparava a mãe apegada e fusionada a seu bebê à boca aberta e dentada de um crocodilo. Tive cinco minutos de vergonha de viver desenhando jacarés por aí mas paradoxalmente fiz também as pazes com todo mundo – jacarés, filhos, mães e desenhos – e entendi que deixar o jacaré solto é deixar a mão livre e os desenhos em cima da mesa e não dentro da cabeça nem da gaveta. 

Só existe um jeito de existir que é existindo. Eu e os desenhos. 

Olho os outros artistas com suas mochilas com seus desenhos dentro delas e suas ideias dentro deles, e acho todos nós muito corajosos, colocando pra jogo nossas cabeças, jacarés, corações e almas. 

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