mulher, pegue a caneta mais próxima. temos muito a escrever.

sabemos: a história tem sido escrita pelos homens. e não só: a arte, os filmes, os romances. e não só: o sentido das palavras. os dicionários.

outro dia estava eu dando alma a um texto. queria dizer que, no desenho, cada risco está grávido de seu sentido. e depois queria falar mais, expandir.

recorri ao dicionário analógico, grande obra que ganhei de um amigo que tem o mesmo amor às palavras que eu. esse livro tem sido um oráculo (de ouro mesmo) para todo impasse de texto que tenho.

ao contrário dos demais dicionários, o dicionário analógico não serve para dar a definição das palavras, mas para fazer ligações entre elas, ampliar sentidos, conectar semanticamente os termos. é mais que um dicionário de sinônimos. é um código de ampliar sentidos. eu amo.

mas que foi escrito por um homem. e juro: doeu no meu peito ver a gravidade disso.

eu procurei a palavra grávida.

em primeiro lugar que grávida não é um verbete-mãe – daqueles que, na lógica do dicionário analógico, inauguram uma cadeia de sentido. grávida é um termo que está dentro do grupo 161: produção.

achei tosco alguém não pinçar a palavra grávida – conceito infinito – como palavra-mãe de um grupo, mas mantive a esperança. às vezes, ao redor de um termo perdido no meio de um outro verbete, o dicionário analógico tece uma rede tão rica de significados que me entusiasma e sacia.

ali encontrei, perto do sentido do que procurava, choco, desova, paridura, puerpério, obstetrícia, prenhez. estado interessante, placenta, genitura, dor de parto, gênese. procriação, reprodução, propagação da espécie, prole, fecundação. pasmem: ali encontrei esperma, líquido espermático, sêmen – mas não encontrei ovário, óvulo, ovulação.

ali encontrei: dar frutos, desabrochar, frutificar.

dar à luz, conceber. enriquecer o lar. perpetuar, propagar a espécie, e, de novo, espermatizar (mas não encontrei ovulizar). 

dentro dos sentidos de produção com valor adjetivo, encontrei genitor, genital, fecundo, criador, espermático (de novo), reprodutor, afrodisíaco, puérpera, puerperal, parturiente, frutífero, fecundador, filheiro, filhífero, frugífero, frutuoso. daí, e só aí, encontrei enfim gestante, grávida. pejada, prenhe, coberta, padreada, arquitetônico (?), arquitetural, compósita.

e em seguida, veio o fim do verbete produção, que dá nome à cadeia semântica onde grávida está inserida.

quando eu procurei grávida eu tinha outra coisa em mente. eu nem queria dizer bebê dentro da mulher.

eu queria dizer plena.

eu queria dizer semente de laranja que guarda um laranjal inteiro.

queria dizer potência de vida latente guardada segura preservada.

queria dizer o ser que sendo dois é um.

que, estando contido, parte, segmento de si, é ainda assim outro.

uma parte que é sua e não é sua.

produto, si e outro.

milagre.

força de vida que escapa a qualquer compreensão.

queria dizer universo inteiro, força inescapável de vida.

queria dizer portadora de grão de areia, célula, que é ao mesmo tempo pessoa inteira, adulta: uma vida inteira que será contida em um grão microscópico, que é parte do seu corpo sendo outro.

uma semente potente de vida, portadora de futuro, de tudo o que essa vida dirá e fará, de seu primeiro passo, seu primeiro desenho, seu primeiro beijo, de seus filhos, de toda a descendência, de tudo o que virá depois e de tudo o que essa vida terá criado, e que guarda em si tudo isso: dentro, parte, seu e não seu.

talvez seja delírio pensar que um homem escreveria tudo isso conectado ao verbete grávida.

talvez bastasse latência, potência – mas nem isso.

mulherada, bora.

se não for a gente para dar sentido ao mundo e às coisas, ninguém.

One Reply to “verbete: grávida

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