Esta semana recuperei uma das matérias mais legais que escrevi na vida, pra Casa e Jardim, há mais de dez anos. Adoro lembrar como cheguei até ela, quando morava em Paris e vivia minha melhor fase de frilas jornalísticos. Eu era uma máquina de pautas, estava há léguas de distância das hard news, só fazia matérias divertidas, sabia exatamente o que propor pra quem, escrevia pro Estadão, pra Carta Capital, pra Playboy, pra Quem Acontece. Eu estava aquecida.

Minha prima tinha uma viagem marcada pra me visitar. Ela tinha ganhado do chefe uma palestra com uma mulher que era, na época, a trendsetter mais respeitada do mundo – e na última hora não pode ir. Num momento que me lembra Faroeste Caboclo, minha prima ficou onde estava e eu fui no lugar dela, sem saber quem era Lidewij Edelkoort – sem nem saber direito o que era uma trendsetter, pra ser sincera. Mas meu contato na Casa e Jardim sabia, e no caminho de casa pra palestra, dentro do metrô, por email, vendi a pauta.

Cheguei num prédio minimalista e simples do 15ème arrondissement, era setembro, o tempo já começava a esfriar, o dia estava feio. A primeira coisa que me lembro quando entrei no prédio foi de sentir um cheiro intenso de pão sendo assado e querer perseguir de onde vinha, pedindo licencinha para pessoas realmente muito chiques e realmente muito blasés.

Estávamos em Paris, era o escritório de uma trendsetter chique – as muitas pessoas que se aglomeravam na pequena aleia que levava ao prédio e já dentro dele eram realmente muito chiques e muito blasés. Pareciam flutuar, pareciam ocas, pareciam ser só uma casca muito fina de pele coberta com tecidos tecnológicos de cores sóbrias, com olhos no infinito emoldurados por armações pesadas de óculos (isso era dez anos atrás, hoje eles teriam uma armação redonda grande mas fininha, quase invisível). No entanto, no meio da sala igualmente ocre e igualmente minimalista, havia um calor de casa de vó enquanto um padeiro todo sujo de farinha fazia pão em cima de uma mesa de mármore branco, colocando e retirando pães de um forno artesanal que sabe-se lá como havia ido parar ali.

O pouco que tinha entendido do muito que minha prima tinha explicado era que aquelas pessoas estavam ali para ouvir as principais tendências para os próximos dez anos. Tendências de que? Da moda?, eu perguntei. “De tudo”, me explicou minha prima. Aparentemente, tirando eu, a audiência da palestra era formada por representantes de empresas mundiais de refrigerantes, de automóveis, de bancos, “de tudo”. Como eu mais cedo diante do tarô do Personare, todas estavam ali para saber o futuro.

Ouço um burburinho, acompanho os olhares que estão se voltando à esquerda, me deparo com uma senhora gordinha de uns 60 anos, cabelos brancos curtos penteados para trás, descendo magistralmente uma escada – entendo que essa é a Lidewij Edelkoort – ela pega o microfone e começa sua fala.

Ela começa a falar de pão. De amor. De amizade. Descreve elegante e envolventemente imagens que quase me fazem chorar, como uma barriga de grávida ou a mão calejada de um homem segurando delicadamente a de um menino. Explica que isso nos toca o coração porque todos fazemos parte da grande família dos homens, somos irmãos. Imediatamente penso como sempre me emociono em saguões de aeroportos, vendo grandes amores se reencontrando. Não os conheço, mas choro sempre.

Minha cabeça tem dificuldade para acompanhar tudo o que Lidewij mostra e ao mesmo tempo processar o fato de que estamos, eu e ultracapitalistas do mundo todo, numa sala muito chique fazendo algo parecido com uma consulta com uma cartomante. Vendo o futuro. E o pior é que eu acredito na cigana muito chique à minha frente – porque tudo o que ela diz que eu vou desejar nos próximos dez anos eu já desejo. Muito. Eu vou, sim, querer comprar tudo o que meus vizinhos de cadeira produzirem depois de ouvirem o que eu ouvi também.

A matéria foi muito festejada, muito bem-aceita. Até hoje encontro reproduções dela em sites e blogs de decoração, místicos, de autoajuda, de todo tipo. Corta para 2020.

No meio da pandemia, meio perdida, muito ansiosa, recebo um email da newsletter que assinei naquela tarde em Paris. Lidewij Edelkoort, quarentenada num hotel (chique) da África do Sul, onde foi surpreendida pela emergência global da Covid-19, vai fazer uma palestra sobre tendências no meio deste cenário distópico. Eu quero. Quero saber o que essa mulher tem a dizer agora. Eu vi do que ela é capaz, eu confio nela. A palestra é cara, eu não sou mais frila, moro na Asa Norte, voltei para o serviço público – não tenho nada para fazer com tudo o que eu ouvir. Dane-se. Eu quero ouvir.

A palestra online é intermediada por uma brasileira por quem antipatizei profundamente – perdida, esnobe – mas Li começa logo a falar. Começa a citar uma série de tendências que observa a partir da pandemia: branco, neve, orvalho, névoa, poeira. Concordo com ela. Espuma, pelo, pregas, cerâmica, desejo de tocar a terra. Concordo muito. Farinha, creme, mofo. Mofo. Ela fala de como a natureza é abundante, muito, toda – tanta, que apodrece. Concordo infinitamente com ela. Concordo com ela num nível microcelular – todos meus átomos concordam. Só anos depois vou assistir Fabulous Fungi, vou ler Georges Bataille, e vou não parar nunca de concordar com ela sobre a potência da ideia de mofo.

Só que depois ela retoma a ideia da farinha (no caminho daquela história do pão da palestra em Paris, anos atrás) e creme, e doce, falando sobre como o doce nos acolhe nesse momento de incertezas, e descamba para… Maria Antonieta, juro. Ela traz o exagero, o excesso, a vida palaciana em Versailles antes da Revolução Francesa como inspiração para o pós-pandemia. É para onde vamos, diz.

Eu, presa no meu apartamento da Asa Norte, de onde devorava Ailton Krenak, Suely Rolnik e Grada Kilomba, não conseguia acreditar no que eu ouvia. Eu estava encarando nossa vida no que ela tinha de essencial, a finitude, meu corpo e o corpo de quem mais amo como aglomerados de células vulneráveis a um vírus, habitados pelo microcosmo descrito pelo Emanuelle Coccia. Mais: estava me dando conta do colonialismo que me habita, do meu racismo, do machismo que infiltra esses aglomerados de células. Estava sonhando com pés descalços na terra, com os dedos calejados das minhas duas avós me fazendo carinho e dizendo que tudo ia ficar bem apesar da dureza da vida. O que me arrepiava na vida era ver o céu estrelado, conhecer Lygia Clark num curso inacreditável da Anne Valls, era ver aquela foto da indígena com a faca na cara do diretor da Eletronorte, que até então não conhecia. Me vem Li Edelkoort com excessos e Maria Antonieta.

O pior é que ela estava coberta de razão. De 2020 pra cá, passamos poucos dias comemorando as tartarugas marinhas que reapareceram na Baía de Guanabara. Logo o mundo voltou a sua velocidade habitual e cá estamos nós comprando roupinhas da Farm com mangas bufantes à la Maria Antonieta.

Já lá, na época, me dei conta que, de toda a apresentação que a Li fez na pandemia, se salvava muito – e com muita força e louvor – a ideia de mofo. Fiquei tão atravessada pela ideia da abundância de vida – e, ao mesmo tempo, pela desconexão dessa trendsetter holandesa com tudo o que para mim era realmente tendência no meu apartamento na Asa Norte em 2020 – que me juntei (virtualmente) com um grupo de amigos com quem fizemos um enorme exercício muito sério de brainstorming de previsão de futuro. Queríamos nós dizer o que sairia da pandemia. Nós. Não uma trendsetter global, mas a gente mesmo. Eu, minha irmã, João e Anndressa. E mais tarde, outros dez amigos do maravilhoso grupo do qual fazemos parte, que no whatsapp atende por Pirulito Democrático (na verdade, esse é uma dissidência, nosso grupo original se chama Afetoria Shaylas Forever).

Fechados nas nossas casas, compartilhando filmes, livros, frases, fotos, ideias, sonhos, fomos muito longe em ideias e metodologias. Falamos em revolução, em medo, na passagem do tempo. Falamos em buscar palavras para expressar o intangível, o novo, o que não existe. Falamos em libertar o futuro. Depois perdemos o fio da nossa meada – mas até hoje acho que, se continuássemos, poderíamos abrir trilhazinhas que indicassem caminhos bonitos de revolução cultural. Pra moda? Pra uma indústria de refrigerante? Não sei. Mas pra pessoas. Pra gente.

Recuperei a matéria da Casa e Jardim conversando com a Gabi, que tem uma marca maravilhosa de roupas de crianças pra quem eu desenhei uma estampa. Me deu uma alegria profunda, inominável, fazer esse trabalho. Eu quis contar pra Gabi sobre essa trendsetter – mas quase implorei pra ela não segui-la. Eu desejo muito que a Gabi continue seguindo a tendência do coração dela. Só dele.

Quando a Gabi me contratou, no ano passado, ela me mandou um briefing tão maravilhoso explicando o que queria que tinha até uma playlist. Era escreveu um briefing denso e sincero que colocava sob o guarda-chuva de temas como “Ventania” e “Tempestade” conceitos como o puerpério, o medo, o tédio, a raiva. A Gabi não tem o menor medo de colocar nada disso em roupas de crianças. Nem eu.

Hoje eu recebi uma outra newsletter de uma marca que eu sigo – eu sigo muitas marcas – com uns objetos de decoração realmente muito bonitos. Muito mesmo. Umas teias aplicadas em transparência sobre globos de luz – uns objetos aconchegantes, lindos, aparentemente feitos no Sul do Brasil por artesãs. Claro, a marca muito chique colocou as fotos da artesãs na divulgação muito chique. Pessoas que parecem simples na foto preto-e-branca, trabalhando felizes. Tomara muito que elas sejam bem remuneradas pelas luminárias de 17 mil reais que fazem. O trabalho delas é realmente lindo.

Preferi colocar as fotos por último pra não atrapalhar o fluxo de leitura, acham que seria melhor no meio do texto?

2 Replies to “Tendências

  1. Que texto delicioso, Carol. Acho que, em maior e menor grau, essa revolução-tendência em que nos jogamos a partir de 2020 nos deixou completamente desnudos diante de nossos sentimentos e atitudes conflitantes, instigantes, angustiantes e – para uma nota positiva – inspiradores.

  2. eu também sinto que se a gente não tivesse perdido o fio da meada a gente teria feito uma revolução. nem que fosse só nas nossas cabecinhas aceleradas. o mofo foi um dos encontros mais especiais da minha pandemia. que boa lembrança de como tudo foi criado e mais ainda, que delícia saber mais detalhadamente de onde surgiu o interesse nessa pauta. te admiro e sinto saudades ♡

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