minha mão sabe antes de mim. nos melhores dias, ela desenha e eu só entendo depois. 

isso nem sempre foi confortável: durante anos, tive uma vergonha mortal de mostrar qualquer desenho a qualquer pessoa. tinha uma reprovação estética, presa no famoso “desenhar mal”, mas sobretudo tinha um pânico de ser lida nos entretraços – que o desenho falasse de mim coisas que nem eu sabia.

me acostumei a ler o desenho depois de pronto, interpretando como sonho ou ato falho. aprendi tantas vezes com o que fiz sem antever que passei a amar o desenho mesmo sem entender: confiando. não amo agora nem entendo agora, mas como sei que uma hora vou entender e amar talvez eu já possa amar logo. e já vou amando.

a ideia desta serigrafia me veio no começo do ano. transar e envelhecer na mesma frase costuram um resultado incômodo. de poucos lugares da cultura nos chegam imagens de gente velha transando, ainda estamos atrasados, falta repertório cultural para ver e falar disso. pior: falta musculatura emocional aqui dentro pra ser isso. nos meus 40 e muitos, talvez eu evite um pouco radicalmente a ideia de me identificar com velhos, sejam os que transam ou não. levando em conta as amigas que usam botox como eu e os amigos que usam remédio para não perder cabelo, acho que não estou sozinha.

mas a ideia desta serigrafia apareceu no começo do ano, quando me apaixonei. da vulnerabilidade típica do amor me veio essa vontade primeiro sem nome e sem forma que depois defini como um desejo de envelhecer transando gostoso. e um desejo de assumir que quero querer isso: poder transar tranquila, poder ser, a qualquer tempo, a mesma eu trocando pele, beijo e gozo com quem eu amo, sem ter que performar juventude e segurança o tempo todo. um desejo que me veio numa clareza cor-de-rosa e vermelha, de traçado organiquinho de giz oleoso sobre um chapado serigráfico escandaloso.

chamei o querido amigo rafa marques pra gente imprimir todo o sentimento, e a gente discutiu cores e grãos de papel que falariam de transar e envelhecer, e eu tive um pouco de vergonha de falar disso com ele pra poder imprimir, tive vergonha e não entendia, mas a mão conduzia e eu só ia, e amei (com vergonha) o desenho pronto.

só que sentir e desenhar e imprimir com o rafa no ateliê é uma coisa. outra coisa é botar na feira. eu nem postei foto desse desenho antes, eu nem conversava sobre ele: só coloquei na mala e levei pra ecêntrica. minha mão que sabe foi tirando o desenho da pasta e botando em cima da mesa e eu deixando porque aprendi a confiar mesmo quando não sei.

e quando botei o desenho na mesa, sob os olhares dos outros, entendi o que eu procurava: cúmplices. entendi porque encontrei.

um coroa transão foi o primeiro comprador, fazendo uns hehehes meio irritantes de quem se acha gostosão, e pra ser sincera me deu meio preconceito e medo de me associar a ele, mas como tinha 15 cópias vendi assim mesmo, quem tá na chuva é pra se molhar. daí tive sorte, porque na sequência teve uma moça fofa, que corou e andou pra lá e pra cá, pra lá e pra cá antes de vir comprar a cópia dela, e eu amei ela e fiquei feliz.

em são paulo teve uns casais que passavam e riam vendo o desenho e se beijavam diante dele e compravam muito alegres, e teve ainda a moça que comprou pro namorado dela muito felizona e depois me mandou essas fotos. e teve o casal que fez o suruba pra colorir que conversou muito comigo e adorou o desenho e eu me senti muito bem acompanhada e feliz. teve a belle, que vai receber a serigrafia dela em olinda, e o fábio, que gostou muito assertivo e comprou, mas ele me apoia em tudo, então ele nem é surpresa.

demorei meses pra conseguir digerir o desenho que eu mesma fiz, pra conseguir postar e escrever sobre ele. não é fácil envelhecer, mas é menos difícil quando se tem um plano que sua mão fez sem você saber.

ps: desenhei e escrevi, mas te imploro, se me encontrar na rua, não mencione esse texto, não aborde esse tema, não fale comigo sobre. escrever pode, pode comentar aqui, mas falar ao vivo não pode. meu desenho chega primeiro, as letrinhas chegam depois, eu mesma, de carne e osso, só chego no tema no século que vem.

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