Cada qual com suas idiossincrasias: tenho amiga que escolhe seus amores pela altura, pelo emprego, pela carga de leitura, pelo cheiro e por outros atributos sobre os quais prefiro não me estender. A Tati Bernardi gosta de falar disso no Meu Inconsciente Coletivo – ela gosta de caras que duelam bem na discussão e que cuidam dela, se bem entendi – e foi por ouvi-la sempre que me flagrei pensando no que é que pega pra mim. Curto e curti homens tão diferentes entre si que custo a identificar um traço comum. Mas achei uma boa aposta quando pensei que eu gosto de gosto. De quem cultiva um gosto próprio, pensa por si, e gosta mesmo do que gosta, desfruta do seu gosto. Não estou falando de boa-vida nem de estilo nem de moda nem de comida necessariamente. Sobretudo não estou falando de dinheiro.

Comecei a pensar muito em gosto depois de ouvir a palestra do Kelefa Sanneh na Flip, no ano passado. De começo não entendi o que um crítico musical estava fazendo num festival de literatura, em uma mesa que se chamava “O meu primeiro amor que acabou com o segundo”. O título ardiloso era a deixa para ele falar sobre como amar punk rock na adolescência mudou a vida dele, desenredando um fio que me fez achar genial a Flip pautar o debate – raro – sobre formação de gosto.

Kelefa começou com: “todo mundo diz que a música une as pessoas. Eu sempre achei o contrário, que a música separa as pessoas. Se eu não te conheço, você diz que ama country music e eu sou punk, eu vou antipatizar com você logo de cara”. (Estou citando de memória, então se quiser fidelidade veja a palestra inteira – que vale por ele e pela mediadora, Didi Couto, que ganhou uma ouvinte de podcast depois de eu tê-la conhecido nessa entrevista.)

Ainda em modo declaração de amor, Kelefa discorreu sobre a descoberta do rock, o velho e delicioso papo de fitas-cassete e CDs disputados a tapas, foi contando como cresceu explorando sons e novidades, e desabrochou curiosamente, criticamente, pesquisando, ampliando o gosto, como faz todo amante de música que se preza. Deu o tom do tipo de crítica que faz quando explicou: “Se de repente explode um músico ou um tipo de som que eu estranho, de que não gosto, faço questão de ir ver uma apresentação ao vivo – e, uma vez lá, fico prestando atenção não ao músico, mas à reação das pessoas. Percebo quando aplaudem, quando vibram. Logo vem a sensação de: ah, entendi”.

Ouvir Kelefa me fez pensar que a gente gosta do que gosta por pertencimento, que se não nos mexermos ficaremos dentro da quitinete do gosto da nossa bolha a vida inteira e que formação de gosto é um assunto decolonial no bom sentido do termo, longe dos clichês e da militância. Futucar em por que a gente gosta do que gosta é revolucionário pra frente e pra trás: fala de onde a gente vem e pra onde quer ir. Localiza a gente no mundo – e logo mais vou chegar até a dizer que é o que dá sentido à vida mas, antes, quero voltar um pouco.

A gente sabe do que gosta? A gente escolhe o que come, o que compra, o que lê? Ou o instagram, o spotify e nossos amigos decidem por nós?

Neste programa do The New York Times o jornalista de cultura digital Kyle Chayka discute porque a internet ficou tão chata ultimamente: ele argumenta que o algoritmo roubou o lugar curatorial. E aqui ninguém está falando com saudade dos especialistas enfadonhos que pautavam nossas preferências em editoriais de jornais e revistas femininas. Kyle e eu temos saudade da internet 1.0, quando ilustres desconhecidos nos dedicávamos a compartilhar ideias e gostos aleatórios diversos em blogs e flickrs, e depois elaborando, pensando e discutindo com outras pessoas em caixas de comentários que eram o exato contrário da filial do inferno que conhecemos agora.

Parênteses: imagina hoje, com o alcance e a permeabilidade que a internet tem, conseguir amplo acesso a conteúdo original, pensado por gente e por gente diversa, sem algoritmo. Existe: um amigo me mostrou outro dia uma espécie de Pinterest sem algoritmo e eu não canso de me surpreender do que acho ali – se chama are.na, eu nem sempre entendo como funciona, mas fuço mesmo assim. Como exemplo, uma vez achei um repositório de referências de design “descentralizado”, com referências de todas as regiões do mundo. Fecha parênteses.

Acho que a primeira vez que pensei sobre gosto, sobre porque eu gosto do que eu gosto e porque isso me importa foi quando descobri o podcast Le Goût de M. As perguntas que introduzem todo episódio resumem o roteiro: o que é ter gosto? Quem tem bom gosto, quem tem mau gosto? O gosto é uma herança, produto da educação, marca de um lugar social? Ou ao contrário, fruto de uma construção pessoal, da nossa entrada em cena na vida?

Se torci o nariz quando pensei num podcast sobre “bom gosto”, bastou começar a ouvir para entender que perguntar sobre o gosto de uma pessoa é um passaporte para conhecê-la para muito além de sua biografia e obras. Como era a casa onde você cresceu? Do que seus pais gostavam? O que eles gostavam de comer? Para onde você viajava? Enquanto nos conduz pelo sabor dessas respostas, Géraldine Sarratia, a jornalista responsável, mergulha nos ambientes: ela está quase sempre na casa dos entrevistados e faz milhares de perguntas sobre a decoração, os objetos, a vizinhança, as cores, o que tem na cozinha. Minha ideia de date ideal.

Mas o ápice do elogio ao gosto, e onde a conversa começa a ficar séria, eu li recentemente no livro “O sentido da Vida”, do Contardo Calligaris (eu tenho o pdf, me peçam). É um relato curtinho, irresistível, discreta e tocantemente marcado pelo fim de sua vida, onde ele desenvolve sua ideia de que muito melhor do que uma vida feliz é ter uma vida interessante. Desenvolvendo esse “interessante” que daria sentido à existência, Contardo se indaga sobre si e sobre seu próprio pai, suas escolhas, o que o movia pela vida. Não quero dar spoiler, mas a segunda metade do livro é bastante dedicada a investigar, com perplexidade, sua descoberta de que a razão pela qual seu pai teria se metido na luta armada contra o fascismo italiano tinha menos a ver com a defesa democrática do que com considerar o fascismo “vulgar”. “Era uma questão estética”, se assombra.

Daí Contardo fala de escolhas e de prazer. Reposiciona o hedonismo num lugar não irresponsável ou fútil, mas de autoconhecimento, de conhecimento do mundo e de compromisso e responsabilidade consigo e com a vida.

Contardo não cita, mas eu vejo uma ligação disso com o trechinho de Luto e melancolia em que Freud me emocionou ao falar do fim do luto: “A cada uma das recordações e expectativas que mostram a libido ligada ao objeto perdido, a realidade traz o veredicto de que o objeto não mais existe – e o eu, como que posto diante da questão de partilhar ou não esse destino, é convencido, pela soma das satisfações narcísicas em estar vivo, a romper seu vínculo com o objeto eliminado”.

A soma das satisfações de estar vivo. O que faz a gente querer continuar vivendo, apesar das dores. Seu conjunto de gostos que te faz gostar de viver. Esse ventinho entrando pela janela, o sol fraco na minha perna, Bethânia cantando Iansã. É bom.


One Reply to “O gosto

  1. Eu li. Meio corridinha, meio pulando algumas coisas, confesso. Mas só pra te imaginar falando isso tudo, numa conversa. E no final, me emocionei ao te encontrar lá. Ali não foi rapidinho não, tá sendo demorado. E é de onde eu te escrevo agora. Pra te mandar um abraço gigante.

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