Me entreguei ao desenho a vida inteira, fazendo sempre, mas escondida sempre, atormentada de tempos em tempos por um conflito interno que pode ser resumido em: por que fazer?
Para que desenhar? Para que publicar um livro? Para que escrever uma história?
Para que serve a arte?
Nunca estudei arte, fugi de toda aula de desenho. Modos de fazer me frustram, só me interessa o que é fresco, novo.
O ego da arte me frustra. Os intermediários, os que têm o poder de falar sobre, a guerra de poder me frustra. Quando penso no mundo das artes visuais – galerias, exposições, vernissages, curadorias, críticas, artigos incompreensíveis não por serem difíceis mas por serem ruins mesmo, vazios, cheios de casca e ocos – penso que gosto de quase nada do que vem junto da palavra arte e artista.
Só que a necessidade de fazer não cessa.
Pra que fazer arte?
Para que serve isso, em um mundo onde pessoas passam fome?
Fui ler Bataille, entendi o dispêndio. Fui ver os indígenas, encontrei saídas, janelas que me interessam muito. Passei a desejar uma arte anticapitalista e da abundância – passei a achar que, sim, a arte tem o que dizer, o que fazer pensar. Mas nessa hora a arte roçou o útil e eu temi ver o desejo de criação refém dessa utilidade. Poço da Alice de novo.
Arte útil é arte? Ou é panfleto? Ou é propaganda?
Como exercitar o desenho pra que ele brote e cresça nesse buraco de sentido que existe entre a ideia-intenção e o traço realizado no papel? Como permitir que esse espaço seja ocupado pela metáfora mais fresca, menos calculada?
Eu amo o desenho cego, o fluxo do traço no papel, eu desejo que saia dali o mais livre, o menos preciso possível. Eu quero desenhar como quem venta.
Um desenho que eu fiz e guardei na gaveta é arte? Ou só é arte quando alguém vê e compartilha?
O fechamento de sentido, feito por mim e por meu espectador, é necessário? Faz o desenho melhor? Ter referência, fazer referência, ser tecnicamente bom e correto faz meu desenho melhor – ou só óbvio? Para que desenhar o que já existe?
Essa semana expus meus desenhos em uma feira pela primeira vez. Perplexa, vendi desenhos.
Revisitei a sensação que tive anos atrás, quando publiquei dois livros infantis e senti a emoção de ver um desconhecido entrar na bolha que eu criei pra expressar o que me toca fundo no peito a ponto de doer. Quando um leitor qualquer entrou na minha bolha, entendeu, se tocou, chorou, me escreveu, me abraçou depois de ler meu livro, eu senti nos pelos de todo o corpo a existência pura do estado de arte, a conexão profunda. É pra isso que serve, pensei. A arte é esse abraço e essas lágrimas.
Com o desenhos, na feira, foi tudo ainda mais forte e sutil. Um livro que, entre aspas, “educa”, e entre aspas de novo, “ilustra” crianças, embora belo e livre, está um passinho mais perto da utilidade que um desenho puro, vendido num plástico. Aquilo que eu fiz sábado era uma barraquinha de vender inutilidades.
E, no entanto, do lado de cá da mesinha eu vi que meu espectador viu a vida (sem sentido em si e pulsante e bela exatamente porque inútil) dentro do plástico. Eu olhei o olho da moça percorrendo a mesinha, estancando em um, ela então apontando pra amiga ao lado: olha!
Ela viu. Viu a vida no desenho que saiu da minha mão.
A moça comprou, entre todos, um desenho que eu fiz do cara que eu gosto, sem saber que eu estava desenhando ele. A outra escolheu, entre todos, um desenho que eu fiz muito muito triste – um desenho para sair da tristeza. Elas viram a vida no papel sem saber e sabendo.
E isso não faz do desenho útil – é só vida, é só a vibração e a sorte de compartilhar o bom e o belo, o tekoporã. O corpo vibrátil da Rolnik vivo no risco no papel, petiscado pelo olho do espectador – desenho no olho, olho no olho.
Foi bom. Quero de novo.
Quero espaços para essa arte fresca, livre, essa arte que não pode ser institucionalizada nem cafetinada pelo capitalismo.
Pra que serve a arte? Acho que para compartilhar a vida. É o que eu entendi até agora.
Texto originalmente enviado para a Fundação Stickel durante a realização do evento Faces em julho de 2021
Acho que a arte tem ser revista e intepretada como um sentimento,um gestos,uma história,um trecho de algo da vida,ou vivenciada.
E antes de mais nada ser reconhecida independente da arte ou artista,
Pois cada traço cada rabisco é uma forma de se expressar ou compartilha com o proximo em fim um sentimento.